21/03/2024
Autor(a): Imaflora
Por Marina Guyot e Lisandro Inakake*
A construção de uma Política Nacional de Rastreabilidade no Brasil em 2024 emerge em um momento decisivo, com a promessa de redefinir as dinâmicas atuais de uso e ocupação do território e de controle do desmatamento e das violações de direitos humanos, especialmente nas cadeias de valor da carne e do couro.
Tal avanço, embora carregado de um potencial transformador, não está livre de enfrentar desafios significativos, mas não intransponíveis. Uma das preocupações recai sobre o risco de se privilegiar modelos que atendam apenas às solicitações de compradores internacionais específicos, como a Europa e outros mercados – que estão lançando regras cada vez mais firmes para garantir produtos livres de desmatamento e conformes com a legalidade -, mas que, não necessariamente, resultarão em uma cadeia de produção mais sustentável e realmente desvinculada destas questões.
Precisamos considerar que ações centradas em apenas “resolver” os volumes que irão para a Europa terão impacto pequeno ou nulo. Por outro lado, havendo cooperação internacional e entre os elos da cadeia, com aporte de recurso para a implementação de uma política nacional universal, que vá além das exigências internacionais, aí sim poderemos ter mudanças significativas. Para isso, devemos olhar para as camadas mais profundas e estruturais das questões. A rastreabilidade e monitoramento socioambiental certamente colocarão foco nos problemas da cadeia e, assim, é preciso que tal política seja acompanhada também de luz nas soluções.
Um dos pontos mais complexos e fundamentais é o custo da adequação de produtores rurais às novas regras de rastreabilidade e monitoramento. Mudanças estruturais requerem incentivos proporcionais ao tamanho do problema. E é preciso entender que se trata de uma conta grande que o Estado brasileiro não conseguirá pagar sozinho. Nem seria justo, considerando que o país exporta quase 30% do que produz, e os outros 70%, consumidos internamente, são comercializados por grupos internacionais, os varejos multinacionais. Há uma responsabilidade para além do Estado e do setor público que precisa contribuir de forma equitativa com essa conta. Ou seja, deve haver a divisão das responsabilidades entre o Estado e o setor privado, em geral, e a contribuição dos grupos multinacionais e empresas, além dos países compradores.
A realidade atual é que, além de serem insuficientes em termos quantitativos, os incentivos pouco levam em conta as perspectivas e diversidade dos produtores, que possuem demandas distintas; logo poderão ser necessários diferentes tipos de incentivos. Para um grande produtor, por exemplo, um incentivo financeiro talvez seja mais interessante do que assistência técnica. Já para um pequeno produtor, justamente a assistência técnica pode alavancar seu sistema produtivo. É importante que se mapeie e se conheça essas necessidades para que as soluções sejam aplicáveis e benéficas aos diferentes tipos de integrantes dessa cadeia, diminuindo as resistências à implantação das novas regras.
Outro ponto que gera objeção à adoção da Política Nacional de Rastreabilidade é a existência de irregularidades, muitas vezes pequenas, nas fazendas produtoras. Enquanto a maior parte atua dentro da conformidade ambiental ou com inconformidades menores, existe uma parcela que atua de forma ilegal e possui processos judiciais a cumprir. A nova Política Nacional de Rastreabilidade não pode punir os primeiros em detrimento dos últimos. Porém, temores de que produtores com qualquer nível de irregularidade sejam proibidos de comercializar aumentam as resistências à implantação de novos mecanismos de monitoramento e controle. Frente aos requisitos exigidos para o cumprimento ao Código Florestal e às regulamentações internacionais para commodities agropecuárias, é essencial que haja mecanismos capazes de promover a reinserção de produtores na cadeia do fornecimento responsável, de forma que possam buscar a readequação e regularização de seus passivos ambientais.
Os mecanismos de regularização ambiental são de responsabilidade dos estados, assim como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e as Guias de Trânsito Animal (GTA’s) também são. O governo federal deve ter um papel de regente, ditando o ritmo, orientando, fortalecendo as políticas estaduais e promovendo a integridade no setor.
Nesse sentido, a iniciativa privada entra com o engajamento dos produtores nessas plataformas, como o Sistema de Restauração Florestal - Sirflor e o Programa de Reinserção e Monitoramento - PREM, importantes instrumentos voluntários e privados, com anuência de estados e Ministério Público Federal - MPF, que promovem a reintegração de pecuaristas na cadeia do fornecimento de forma rápida e menos burocrática por meio da restauração vegetal do desmatamento ilegal em suas propriedades.
Em suma, a implementação da Política Nacional de Rastreabilidade, proposta liderada pela Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável e apoiada pela Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, ultrapassa a questão da conformidade legal. Na realidade, ela se apresenta como uma oportunidade única para redefinir as relações entre produção, regulação, meio ambiente e direitos humanos. Seu objetivo é fortalecer a pecuária, fazendo jus à potência do setor. Não é uma escolha ideológica e, sim, de negócios e aprimoramentos tecnológicos, sendo responsável, eficiente e convivendo em equilíbrio com o ambiente natural. Desafios existem, mas posicionar o setor agropecuário brasileiro na vanguarda das melhores práticas socioambientais no mundo é uma oportunidade única a ser regulamentada e aproveitada.
*Lisandro Inakake é engenheiro agrônomo e gerente de Projetos em Cadeias Agropecuárias do Imaflora
*Marina Guyot é engenheira agrônoma e gerente de Políticas Públicas do Imaflora