A divisão de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações
Unidas (ONU) acaba de publicar um estudo a respeito do futuro da
sustentabilidade na agricultura e na produção de alimentos -
http://www.un.org/esa/dsd/dsd_sd21st/21_pdf/agriculture_and_food_the_future_of_sustainability_web.pdf.
O relatório Food and Agriculture: The future of sustainability foi lançado como uma contribuição estratégica para o relatório mais amplo Desenvolvimento Sustentável no Século 21,
que será lançado na Rio+20. O documento é fruto de uma consulta a
dezenas de líderes ligados ao setor, numa lista que inclui diversos
brasileiros. Estes apontaram as tendências e prioridades para que se
garantam sistemas agrícolas e produção de alimentos sustentáveis nos
próximos 20 anos. O estudo conclui sobre o que há de consenso sobre o
tema, mas também explicita as áreas em que há divergências fundamentais.
Seja pelos consensos ou dissensos, devemos digerir seus resultados e
usá-los como mais um importante subsídio para a definição de políticas
para este setor crucial do nosso País. Espero que nos ajude a oxigenar a
reflexão e o debate público sobre a nossa agropecuária, o que e como a
queremos e que políticas necessitamos para tal.
O estudo destaca a escassez de recursos naturais, energia e insumos
como uma tendência para a produção agropecuária. Isto se opõe a outros
aspectos alarmantes que têm recebido pouca atenção: o desperdício ou
perda de 30% a 40% do que é produzido e o fato de o comércio de
alimentos atual já dar conta da necessidade de calorias da população
humana, contrastando com desnutrição e obesidade.
O trabalho também ressalta a necessidade de integração entre o uso da
terra e os serviços ambientais para a qualidade de vida local e global.
Alerta sobre um conjunto de medidas para a adaptação às mudanças
climáticas. Conclui que estamos no caminho errado: a prioridade deve ser
na qualidade da produção e do produto e na distribuição dos alimentos,
em vez do foco exclusivo na quantidade a ser produzida.
Entre outras tendências, o estudo também ressalta o risco da
concentração da produção e da distribuição da comida. Metade do que
comemos vem do cultivo de arroz, milho e trigo e um pequeno grupo de
empresas domina o comércio mundial de alimentos. Finalmente, destaca a
mudança na governança, em que a dinâmica entre governos, o
multilateralismo, o setor privado e a sociedade civil é bastante
distinta de décadas passadas.
Os autores concluem que poucas empresas e ONGs tomaram a dianteira na
inovação e na busca de soluções para a agricultura sustentável,
enquanto a maioria dos outros atores ainda está batendo cabeça sobre em
que direção ir e o que fazer. Tal cenário reflete muito bem a situação
do nosso País e a discussão do Código Florestal é apenas um indicador. A
conclusão é a de que é necessário equilibrar as forças entre o setor
empresarial e o Estado, buscando integrar políticas públicas e privadas
que se direcionem para o bem público comum.
As nove áreas de consenso dos especialistas foram:
- Pequenos e médios produtores organizados (com ênfase para as mulheres agricultoras) devem ser prioridade para investimentos.
- A meta da produção sustentável deve ser definida em função da
nutrição humana em vez de ser focada simplesmente na ideia de produzir
mais.
- É preciso buscar alta produção com conservação ambiental, que não
deve se opor, tendo políticas e uma agenda de pesquisa compatível para
esse objetivo.
- Estimular a inovação e a disponibilização de diversas tecnologias
de produção sustentáveis, aplicáveis para diferentes contextos
socioeconômicos e ecológicos. Logo, evitar os pacotes tecnológicos,
dominantes na agropecuária nacional.
- Reduzir significativamente as perdas em toda a cadeia de alimentos.
- Desenvolver políticas de produção de biocombustíveis de maneira
descentralizada, evitando que estes substituam a produção de alimentos.
As políticas devem se somar para promover a segurança alimentar e
energética, contribuindo para diversificar e restaurar as paisagens
rurais.
- Medir de maneira inteligente e transparente os resultados rumo à
sustentabilidade. O estudo adverte que pouco se medem os impactos das
mudanças em curso no campo, o que não nos permite tomar decisões
adequadamente.
- Desenvolver e adaptar as instituições públicas e privadas para que
possam responder eficazmente ao novo paradigma da sustentabilidade.
- Incentivar e recompensar os investimentos e sistemas de negócios que resultem em impactos mensuráveis para o bem público.
Vale a pena darmos visibilidade aos dilemas. As áreas em que não há
consensos entre os especialistas sobre o rumo da sustentabilidade da
agricultura e dos alimentos ficaram organizadas em sete perguntas:
A segurança alimentar será mais garantida pela produção em larga ou pequena escala?
Qual deve ser o papel das corporações no sistema alimentar?
Quais tecnologias entregarão de maneira efetiva uma segurança
alimentar sustentável? Qual deve ser o equilíbrio entre sistemas
intensivos de uso de químicos e práticas agroecológicas?
Qual pode ser o papel dos transgênicos para a segurança alimentar?
Quanta biodiversidade deve haver nos sistemas de produção agrícola?
Como se adaptar à crescente demanda por proteína animal?
Como o comércio pode afetar a segurança alimentar dos países? Qual o
equilíbrio entre produção e consumo local e o comércio global?
O relatório é categórico: a situação como está (business as usual)
não é uma opção para o alcance da agricultura e a alimentação
sustentáveis. Adiciona que um "esverdeamento" parcial não é suficiente,
sendo necessária uma visão ampla e sistêmica e a reconstrução do setor
com novas tecnologias e políticas. O papel da extensão rural e do
cooperativismo é colocado como central, na contramão da situação
brasileira, em que muitas cooperativas viraram revendas de insumos e os
produtores são assistidos por técnicos de multinacionais de empresas de
agroquímicos e sementes.
Finalmente, a governança é recorrente em todo o estudo, com muitos
destaques para a busca do equilíbrio entre o papel do Estado e do setor
empresarial. Estes são vistos como complementares ao invés de
antagônicos. Contudo, o indicativo é o de que os defensores do
liberalismo estão em menor quantidade do que antes, pois neste aspecto a
conclusão é a de que mercados eficientes e equitativos são criados por
governos fortes e não por mercado auto-regulados.
Os desafios são enormes, mas a única opção é enfrentá-los e o Brasil
está numa posição privilegiada para ser protagonista neste processo.
Além da situação especial de disponibilidade de terras e condições
naturais para produzir, é líder em pesquisa e inovação na agropecuária
tropical.
O País conta com um setor produtivo em que a vanguarda está presente,
mesmo que ainda convivendo lado-a-lado com o arcaico. Nossa sociedade
civil é organizada e aos poucos está despertando para a importância do
campo para a sua vida e para o projeto do nosso País. A grande lacuna
ainda está na desconexão e contradições das políticas públicas que devem
criar as condições para a construção de uma nova agropecuária.
Somente alcançaremos a condição de líderes quando as políticas
passarem de setoriais para sistemáticas e coordenadas. O estudo deixa
evidente a importância de integração de políticas econômicas, sociais e
ambientais, que vão da saúde e educação à infraestrutura e comércio. Não
há fórmula para isto, mas o que sabemos é que tratar cada tema
separadamente gera enormes contradições, perda de energia e muitas
dificuldades para o avanço rumo ao desenvolvimento sustentável.
Luís Fernando Guedes Pinto é mestre em Ciências da
Engenharia Ambiental pela Universidade de São Paulo e doutor em
Fitotecnia, com atividades no Icraf Sudeste da Ásia. É gerente de
Certificação Agrícola do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e
Agrícola (Imaflora). Professor colaborador do mestrado
profissionalizante da Escola Superior de Conservação Ambiental e
Sustentabilidade, foi pesquisador associado do Oxford Centre of Tropical
Forests, do Environmental Change Institute da Universidade de Oxford.
Fonte: Portal Terra