MAURICIO DE ALMEIDA VOIVODIC
ESPECIAL PARA A FOLHA
O escândalo da adição fraudulenta da carne de cavalo à bovina em
alimentos congelados comercializados na Europa evidencia um grande
desafio que deve ser enfrentado não apenas pelo setor do agronegócio,
mas por todas as cadeias produtivas de commodities: o de conhecer e
garantir a origem da matéria-prima utilizada em seus produtos.
Os danos chegaram à JBS Toledo, subsidiária belga da brasileira JBS, elo
de uma complexa corrente do comércio globalizado, na qual um boi pode
crescer e ser abatido no Brasil, sua carne ser processada na Romênia e
no Chipre para finalmente ser consumida no Reino Unido.
Já o couro do mesmo animal pode seguir um caminho totalmente diferente,
mas não menos tortuoso, passando pelas mãos de um designer de moda na
Itália para finalmente tomar a forma de uma sofisticada bolsa em um
desfile em Paris. Ou ainda virar um tênis pelas mãos de operários na
China, que será vendido na rua 25 de Março, em São Paulo.
São diversos os fatores macro e micro-econômicos que favorecem essa
situação, levando as grandes indústrias mundiais a alocarem seus
recursos de produção onde e como for mais eficiente e barato. Estaria
tudo certo se não fosse o problema fundamental dessa situação: o fato de
que as indústrias que atuam nesse concorrido varejo perderam por
completo o domínio da informação sobre a origem das matérias-primas que
utilizam e que chegam com suas marcas aos consumidores do mundo todo.
Esse problema torna-se ainda maior, uma vez que estamos em plena era da
informação e da conectividade. A fraude da carne de cavalo chegou ao
mundo todo em poucos minutos, causando danos graves à reputação das
empresas envolvidas e, consequentemente, aos seus mercados e
faturamentos.
Além disso, os consumidores hoje estão acostumados a terem acesso rápido
e irrestrito a um volume imenso de informação e não deverão aceitar por
muito tempo o convívio com essa grande "caixa preta" da cadeia
produtiva de commodities, que nos impede de saber a origem dos produtos
que consumimos.
Já ficou claro também que o consumidor não está preocupado apenas com o
risco de consumir gato por lebre, ou no caso, cavalo por boi. Também não
queremos mais comprar um produto originado de trabalho escravo ou
degradante, que tenha desmatado a Amazônia ou utilizado produtos
químicos que contaminam o planeta e a nossa saúde.
CAMPANHAS
É por isso que as campanhas que associam as grandes marcas a temas dessa
gravidade tornaram-se tão populares nos últimos anos, causando sérios
impactos às marcas. Para lembrar dois casos clássicos, supermercados
brasileiros foram obrigados a rever seus procedimentos quando veio à
tona a informação de que compravam carne de produtores que desmatavam a
Amazônia e, antes disso, o caso do óleo de palma da Indonésia, usado por
uma indústria de alimentos que, além do desmatamento, contribuía com a
extinção do orangotango naquele país.
As grandes indústrias mundiais também já dão sinais de que não querem
suas cadeias produtivas envolvidas com tais práticas. Um exemplo é a
iniciativa The Consumer Goods Forum, uma rede que integra cerca de 400
das maiores empresas globais, que durante a Rio+20 declarou publicamente
a meta de alcançar desmatamento zero em suas cadeias produtivas até
2020. O problema é que, como já mencionado, as redes são tão complexas
que algumas empresas mal conseguem garantir que a carne bovina de uma
lasanha não venha de um cavalo.
E esse é justamente o nó que os setores que trabalham com commodities
terão que desatar: transparência em todas as etapas da produção, do
início ao fim, incluindo a responsabilidade sobre empresas
terceirizadas. Precisamos de empresas que possam nos fornecer produtos
e, ao mesmo tempo, nos informar sobre a origem de suas matérias-primas.
Precisamos ter garantias de que, ao longo da cadeia produtiva, esses
materiais não estão causando mal para a sociedade nem para o planeta. E
precisamos disso logo.
RASTREABILIDADE
O termo técnico para o processo que garante que informações sobre os
produtos sejam passadas ao longo dessas diversas etapas é
rastreabilidade. Essa palavra tem se tornado um mito, pois já se afirmou
que seria impossível garantir a origem de matérias-primas utilizadas
por uma grande indústria global ou até mesmo que seria inviável
garanti-la na cadeia da carne, uma vez que o gado se locomove ao longo
das suas etapas de vida, podendo nascer em um lugar, crescer em outro e
morrer em um terceiro.
O fato é que o caso da carne de cavalo nos mostra que simplesmente não
podemos mais aceitar que as empresas não façam a rastreabilidade de seus
produtos. Essa cômoda situação tornou-se insustentável.
Iniciativas recentes no Brasil e no exterior mostram que a
rastreabilidade é tecnicamente possível e que é uma tendência que
realmente veio para ficar. Uma delas é a certificação de fazendas de
pecuária no Mato Grosso, pela Rede de Agricultura Sustentável, que
comprovam a rastreabilidade de suas carnes no pasto --onde cumprem com
rigorosos critérios socioambientais--, nos frigoríficos e nas demais
etapas de processamento, chegando até supermercados e ao mercado
externo.
Graças a essa rastreabilidade, a carne certificada tem maior facilidade
de acessar a Cota Hilton do exigente mercado Europeu. Outro exemplo vem
da gigante e abrangente rede McDonald's, cujo programa Além da Cozinha,
em lançamento no Brasil e na Austrália, já permite que o consumidor veja
em seu celular a origem de todos os produtos contidos em seu sanduíche.
Agora cabe às empresas assumir o compromisso de garantir a
rastreabilidade e ampliar a transparência de seus processos produtivos. E
a nós, consumidores, cabe o importante papel de utilizar essas
informações para escolher o que compramos e de quem compramos.
MAURICIO DE ALMEIDA VOIVODIC, 33, engenheiro florestal e mestre
em ciência ambiental pela Universidade de São Paulo, é
secretário-executivo do Imaflora. A ONG faz parte da Rede Folha de
Empreendedores Socioambientais
Fonte: Folha de São Paulo/Mercado