Lisandro Inakake e Pedro Burnier*
O Brasil ostenta números grandiosos na pecuária. Para o bem e para o mal. O rebanho, segundo maior do mundo, supera 230 milhões de cabeças de gado e garante para o país o posto de maior exportador de carne bovina do planeta. Cerca de 40% dessa riqueza concentra-se nos nove estados da Amazônia Legal, seguido pelo Cerrado, mas a atividade é expressiva em todos os biomas, envolvendo mais de 2,5 milhões de produtores.
Alcançar tal escala teve seu preço. Entre 1985 e 2022, a atividade respondeu por quase dois terços do desmatamento decorrente da expansão agropecuária – segundo levantamento do MapBiomas, a área de pastagens passou de 103 milhões de hectares para 164,3 milhões de hectares no período, tendo a Amazônia como vetor. Desse total, 28 milhões de hectares correspondem hoje a pastagens com diferentes graus de degradação, como aponta um estudo da Embrapa.
Esse balanço dá uma ideia da complexidade do setor e de seu potencial de contribuição para a mitigação das mudanças climáticas. E, cada vez mais, ele será cobrado por isso. No mercado internacional, a Europa está de portas abertas para receber os produtos livres de desmatamento a partir do fim deste ano. Outros grandes mercados, como China e Estados Unidos, sinalizam medidas semelhantes. Manter-se na liderança traz para a pecuária uma nova fronteira a ser vencida: a de conferir transparência e credibilidade às informações que atestem sua conformidade ambiental e social.
O chamado TAC Carne Legal – um Termo de Ajustamento de Conduta firmado pelo Ministério Público Federal (MPF) com frigoríficos instalados na Amazônia – acaba de completar 15 anos e, somente no ano passado, encerrou o primeiro ciclo unificado de auditoria. Seu objetivo: comprometer os frigoríficos com o controle dos ilícitos cometidos pela cadeia de fornecimento. Coibição de desmatamento ilegal, de invasão de áreas públicas, de produção em áreas com embargo ambiental e de trabalho escravo formam a linha de base desse TAC, que tem como respaldo legal um decreto presidencial de 2008.
No início, cada empresa lançava mão de ferramentas próprias para mensurar a conformidade, o que causava algumas incertezas. Apenas em 2019 esse controle ganhou uniformidade, com a consolidação do protocolo de monitoramento unificado Boi na Linha, que harmonizou os diferentes critérios até então desenvolvidos e adotados pelos frigoríficos. Passados cinco anos, a realidade já é outra, mas ainda é preciso avançar na institucionalização do protocolo, unificando sistemas e procedimentos, dando celeridade às auditorias e melhorando o acesso à base de dados.
Mirando no longo prazo, os frigoríficos têm interesse em intensificar o rigor nas suas cadeias de fornecimento. Sabem que, além das pressões do mercado consumidor, a capacidade de atestar boas práticas ambientais e sociais logo irá lastrear o acesso a crédito e investimentos. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban), por exemplo, soltou uma normativa, no ano passado, definindo que os frigoríficos que tomam crédito devem monitorar sua cadeia de fornecedores indiretos até 2025. Não se sabe ainda como isso será feito, mas o regramento está dado. E o fato é que somente com políticas públicas adequadas é possível gerar uma mudança de cultura tão grande em um país de dimensão continental.
É preciso avançar na criação de um sistema nacional de rastreabilidade, que permita acompanhar a trajetória do gado desde o nascimento e consolide as informações necessárias para que as empresas possam monitorar sua cadeia de fornecimento direto e indireto. Hoje, na Amazônia, o monitoramento se dá apenas sobre a fazenda de engorda, de onde o boi sai para o abate, mas ele pode ter nascido e passado parte do seu desenvolvimento em outra propriedade, ainda não rastreável com as ferramentas atuais. As bases de dados que viabilizam o monitoramento são públicas (Inpe, Ibama, Incra, Ministério do Trabalho), mas as informações precisariam estar sistematizadas e integradas com em uma plataforma única, como a aguardada AgroBrasil+Sustentável, em desenvolvimento pelo Ministério da Agricultura e Pecuária.
Dispor de um repositório unificado de informações daria fim também a uma situação peculiar que se verifica em alguns estados, nos quais o MPF precisa recorrer à judicialização para ter acesso a dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e das Guias de Trânsito Animal (GTAs), fundamentais para um sistema de rastreabilidade e para aumentar a segurança de dados nas auditorias realizadas sobre as operações de compra de gado pelos frigoríficos. As negativas se respaldam em interpretações equivocadas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas acabam favorecendo o ocultamento de irregularidades ambientais e fundiárias, por exemplo.
Mirando o mercado externo, é urgente estender as boas práticas iniciadas na Amazônia pelo TAC Carne Legal a outros biomas. Quando chega na prateleira, a carne é brasileira, independentemente do seu estado de origem. E tanto a rastreabilidade do rebanho quanto o monitoramento em nível nacional podem se tornar um diferencial, atestando conformidade socioambiental para o conjunto da produção. As condições para esse avanço estão dadas: já existe uma base negociada por empresas, organizações sociais e Ministério Público, com parâmetros replicáveis em todos os biomas, flexibilidade para adaptações às legislações locais e em harmonia com a agenda global de mitigação das mudanças climáticas e os interesses da coletividade.
*Lisandro Inakake é gerente de projetos em Cadeias Agropecuárias do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora); Pedro Burnier é Diretor de Cadeias Agropecuárias da Amigos da Terra