Falta de acesso às informações do
proprietário dificulta monitoramento do CAR pela sociedade
Maura Campanili
Um
dos grandes desafios da abertura de dados por parte dos órgãos públicos
brasileiros, como determina a Lei de Acesso à Informação (Lei no
12.527/2011), é a fronteira entre dados públicos e privados. A decisão sobre o
que é disponibilizado varia conforme o órgão ou o tipo de informação, muitas
vezes se tornando um limite à atuação de outras instâncias de governo, a
estudos e ao controle por parte da sociedade civil. Um dos exemplos dessa questão,
na área ambiental, é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma base de dados com 4,7
milhões de propriedades e 519 milhões de hectares, na qual não estão
disponibilizadas informações sobre os proprietários (ou posseiros) do imóvel. Esse
foi um dos temas centrais abordados nos painéis organizados pelo Instituto de
Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e parceiros no III
Encontro Brasileiro de Governo Aberto, realizado nos dias 4 e 5 de dezembro, em São Paulo. “A falta de acesso ao nome do
proprietário do imóvel, no caso do CAR, torna a possibilidade de atuar da
sociedade civil limitada”, defende Renato Morgado, coordenador de Políticas Públicas
do Imaflora. Para Morgado, os limites de sigilo têm diferentes interpretações e
seguem dinâmicas políticas. Um exemplo é o CAR no Estado do Pará, que usa a
mesma base do federal, mas disponibiliza o nome e CPF ou CNPJ do proprietário.
“No próprio governo federal, há diferenças de abordagem. Tanto a lista de
propriedades embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) quanto a Lista de Trabalho Análogo à Escravidão
trazem acesso integral aos dados.”“O CAR deveria ser instrumento de
transparência, que permitisse o livre acompanhamento junto com outros dados,
como o inventário florestal e autorizações de manejo”, diz Roberta del Giudice,
secretária-executiva do Observatório do Código Florestal. Segundo ela, a
Constituição diz que a vida privada e a intimidade são invioláveis, mas o
sigilo das demais informações deve ser excepcional e com prazo
pré-estabelecido. “O exercício do direito se dá a partir do acesso à informação”.Essa compreensão de limite desigual,
para o coordenador do Imaflora, não é estritamente jurídica, mas política.
“Para a sociedade civil, informações de propriedades que têm função
socioambiental – como são os imóveis rurais – são de interesse público. Quando
descumprem essa função estão retirando o direito do restante da população a um
meio ambiente íntegro”, explica.Outro dado que não está disponível,
segundo Morgado, e que poderia fazer muita diferença, é a Guia de Trânsito
Animal (GTA), que acompanha o transporte de animais no país. “Se pudéssemos
cruzar esses dados com o CAR e o Prodes, teríamos melhores instrumentos de
rastreabilidade da carne e o consumidor poderia saber se está consumindo
produto vindo de área com desmatamento ilegal ou registro de trabalho análogo à
escravidão”, diz. No caso da madeira, esse problema
começa a desaparecer, com a abertura, em setembro deste ano, dos dados do
Documento de Origem Florestal (DOF) pelo Ibama. “Com o acesso a esta base de
dados, é possível identificar padrões de ilegalidade da produção madeireira
amazônica e criar ações que enfrentam o problema”, diz Morgado.
Prestação de contasSegundo o auditor do Tribunal de
Contas da União (TCU), Eduardo Nogueira, o sigilo fiscal faz com que a
auditoria do TCU não possa ser efetivo na Receita Federal. “Sem informação, o
TCU não consegue atuar com eficiência. A Constituição garante o sigilo aos
dados pessoais, mas pessoa jurídica tem o mesmo direito? Um exemplo é que, no
Portal da Transparência, é possível encontrar nome, endereço e todas as
informações de um beneficiário do Bolsa Família. No entanto, o governo concede
mais de R$ 300 bilhões em renúncias tributárias e não sabemos quais empresas se
beneficiaram. O TCU deve se pronunciar sobre o sigilo fiscal e tributário no
início do próximo ano”, disse.
Falta Cultura de
abertura de dadosCamille Moutra, da Open Knowledge
Brasil, abordou o último período eleitoral, quando a organização queria mostrar
o quanto os candidatos haviam enriquecido, a partir de dados de empresas das
quais eram sócios. Os dados referentes aos quadros societários das empresas são
públicos no site da Receita Federal, no entanto, só era possível consultar uma
ficha por vez. A organização, então, pediu a liberação dos dados completos com
base da Lei de Acesso à Informação. “Informações que demandem gastos públicos
podem ser cobradas, mas a Receita queria cobrar meio milhão de reais. Entramos
com recurso na CGU, que nos deu ganho, pois a base de dados já estava pronta e
não demandava despesas. Com isso, a Receita Federal disponibilizou os dados,
que passaram para a transparência ativa”, conta.
Participação qualificada
ainda é restrita para populações tradicionaisNesta terceira edição, o evento abordou, pela primeira vez, a transparência
relacionada às populações tradicionais. Para Nilce de Pontes Pereira dos
Santos, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais
Quilombolas (Conaq), e Andrew Toshio Hayama, defensor público e conselheiro
Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo, a ausência de participação
qualificada tem prejudicado esses povos na defesa de seus direitos, sobretudo à
terra. Entre
as dificuldades enfrentadas por essas comunidades no acesso à informação, está
a necessidade de dialogar com diversos órgãos (PGE, Fundação Palmares,
secretarias estaduais e municipais de Meio Ambiente etc.) e a falta de
preocupação do Estado em fazer a informação chegar até eles. “Para que haja
realmente acessibilidade, é preciso um esforço do governo em saber quais são as
organizações coletivas que representam esses povos e que possam participar das
políticas públicas que os afetam. É preciso também superar obstáculos com o
fluxo de informação, que exige acesso a internet e comunicação escrita”, diz
Hayama.
Fronteira entre dados públicos e privados é desafio para transparência
18/12/2018
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