Arilson Favareto e Marina Piatto*
É incontestável que já estamos vivendo sob 1,5 ºC de aquecimento global, ou perto disso. Chuvas torrenciais na desértica Dubai e na Arábia Saudita ainda estampavam as páginas dos jornais de maio quando uma tragédia se abateu sobre o sul do Brasil. Incêndios assolam agora a região Norte, o Pantanal e o Canadá. Termômetros marcam temperaturas mortais (para cima e para baixo) na África, na Ásia e na América do Norte; cheias e secas se intercalam na Europa; os oceanos estão cada vez mais quentes e geleiras se liquefazem. As mudanças climáticas são uma realidade e exigem solução urgente.
De todas as atividades humanas, a alimentação certamente é a mais básica, essencial e universal. A nada trivial tarefa de garantir comida para mais de 8 bilhões de pessoas complica-se quando somada aos eventos climáticos extremos e às emissões de gases de efeito estufa próprias da atividade. No cenário de perdas e danos das catástrofes, essa combinação confere aos modos de produção e de consumo de alimentos lugar de destaque na corrida pela mitigação do aquecimento global e adaptação às suas consequências.
A conexão entre clima e sistemas agroalimentares precisa dar passos importantes na próxima Conferência do Clima, em novembro, no Azerbaijão. Já na COP de Dubai, em 2023, a pauta foi destaque da discussão de agricultura, com a assinatura, por 133 países, de uma Declaração sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática. O desafio é traçar um mapa de transição que garanta sistemas agroalimentares justos e sustentáveis. Urge uma mudança abrangente – da produção ao consumo, passando por armazenagem, transporte e processamento. Envolve governos, produtores, academia, ONGs e população.
O Brasil, na atual qualidade de maior exportador de sete commodities agropecuárias (soja, milho, açúcar, café, suco de laranja, carne bovina e frango), precisa assumir liderança nessa arena. Dados divulgados em março pelo Banco BTG Pactual revelam que a produção nacional é capaz de suprir 900 milhões de pessoas – 11% da população global e 4,5 vezes a local.
Os próximos anos serão fundamentais para esse debate e especialmente favoráveis ao protagonismo brasileiro. Primeiro, porque em 2025 acontecerá um balanço dos dez anos do Acordo de Paris – e ele não será positivo nem em relação às metas traçadas, nem à realidade dos termômetros. Os países deverão indicar (e cumprir) compromissos mais ambiciosos, que, na prática, só decolam se forem acompanhados dos meios para sua implementação. Será preciso influenciar as agendas dos tomadores de decisão ao redor do mundo, e o Brasil vive uma conjunção favorável para desempenhar esse papel: está agora à frente do G20, assumirá a coordenação dos Brics em 2025 e, no mesmo ano, sediará a COP 30, cujos temas em destaque serão adaptação e transição justa.
Há uma ampla gama de iniciativas, experimentações e práticas visando adaptação e transição nos sistemas agroalimentares – prova de que a agenda climática vem se impondo ao setor. Paradoxalmente, os vetores de degradação ambiental também se intensificaram, com desmatamento, perda de biodiversidade e uma escalada global de problemas de saúde relacionados aos padrões de produção e consumo alimentar. E mais: nem todas as formas de transição em experimentação contemplam a ideia de justiça social e podem implicar maior concentração e exclusão.
Um fato novo é o reconhecimento de que os sistemas agroalimentares atuais têm se mostrado insustentáveis mesmo do ponto de vista estritamente financeiro. Um estudo da FAO de 2023 aponta prejuízos de US$ 3,8 trilhões com perdas de produção devidas a eventos climáticos nas últimas três décadas. E um relatório lançado em março por um dos principais cientistas globais do Clima, Johan Rockstrom, do Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático, mostra que, se forem contabilizados todos os efeitos negativos derivados do padrão de produção e consumo dos sistemas agroalimentares convencionais, esses custos já excedem o valor de tudo aquilo que é produzido. Ou seja, promover algum tipo de transição não é só uma questão de racionalidade ambiental, mas também de racionalidade econômica.
No que toca à produção, as experiências acumuladas pela agropecuária regenerativa apontam para um conjunto de práticas que contribuem para diminuição de emissões e aumento da resiliência. Essencialmente, o caminho é parar de desmatar, diversificar e se empenhar em reflorestar APPs e reservas legais. A tragédia recente no Rio Grande do Sul ensinou mais uma vez que as áreas florestadas formam faixas de proteção. Nas cheias, contêm a água excedente e, nas secas, devolvem essa água para os rios. Além disso, evitam assoreamento, favorecem a infiltração hídrica, contribuem para a manutenção ecossistêmica e estocam carbono.
Um segundo bloco de ações está ligado a práticas que preservam o solo. A regra é mantê-lo vegetado para evitar que se degrade, pois esse processo também libera carbono. Uma terceira frente é a das práticas produtivas, privilegiando sistemas diversificados, que revertam a monotonia alimentar contemporânea. O aumento de eficiência produtiva, a manutenção da fertilidade das pastagens, a plena cobertura do solo, o uso de leguminosas para fixação de nitrogênio e o plantio direto são outras medidas consagradas.
A transformação depende da diversidade (de atores e de práticas), bem como da coordenação (de políticas e esforços públicos e privados) para pactuar soluções que aliem iniciativas de produção e modelos de negócios a baixas emissões e segurança alimentar, sem acentuar desigualdades.
*Arilson Favareto é coordenador do Cebrap Sustentabilidade e Marina Piatto é diretora executiva do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), fundadores da iniciativa ThinkFood&Climate, lançada em conjunto com a Cátedra Josué de Castro, da USP.
Publicado pelo Valor Econômico.