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Hora de destravar o financiamento da biodiversidade

21/10/2024

Articular mecanismos de financiamento público e privado para remunerar os países e as populações que contribuem para a conservação da biodiversidade global é a grande missão da COP16

 
Patrícia Cota e Luiz Brasi Filho*

 

O clima é de apreensão e urgência entre os negociadores de quase 200 países, representantes da sociedade civil e ambientalistas que desembarcam em Cali, na Colômbia, para a 16ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) ou COP 16 da Biodiversidade, que acontece de 21 de outubro a 1º de novembro. Muito se falou do risco de uma ofensiva dos guerrilheiros locais, irritados com a militarização da cidade para garantir a segurança do evento. Mas o que realmente assusta esse grupo é a consciência de que, juntamente com o avanço da crise climática, o mundo perde biodiversidade a uma velocidade alarmante, acelerando rumo a um perigoso ponto de não retorno.

 

Os números mostram essa escalada: apenas nos últimos 50 anos, o tamanho médio das populações de vida silvestre monitoradas sofreu uma redução de 73%, de acordo com o Relatório Planeta Vivo, lançado pela WWF neste ano. Ainda mais assustadora é a intensidade com que as perdas ocorrem – a taxa mundial é até 1.000 vezes maior do que seria natural e, no Brasil, o índice pode chegar a até 10.000 vezes maior. É uma situação grave para um país que abriga nada menos do que seis biomas e cerca de 20% de toda a diversidade biológica do planeta, com estimadas mais de 163 mil espécies de plantas, animais e fungos. 

 

O desmatamento, ligado a mudanças no uso do solo, é o principal motor dessa dizimação no país, assim como é também a maior causa de emissões de gases de efeito estufa, o que conecta diretamente a conservação de florestas às agendas nacionais de mitigação climática e de conservação da biodiversidade. Os fatos comprovam essa indissociabilidade. De um lado, eventos extremos – como as enchentes no Rio Grande do Sul, a seca recorde na Amazônia e as queimadas que se alastram por todo o país – fazem da biodiversidade uma vítima, com perdas de espécies, diminuição das populações de fauna e flora, biomas inteiros em risco, como o Pantanal, que pode desaparecer até o fim deste século. Do outro, à medida que a biodiversidade decai, processos como a polinização e o ciclo de água, por exemplo, ficam comprometidos, diminuindo a resiliência ambiental, aumentando os riscos para a saúde da população e ameaçando populações que têm sua cultura e subsistência intrinsicamente ligadas aos recursos naturais, como povos indígenas, quilombolas, extrativistas e outros.

 

Fácil concluir que, se a maior fonte de emissão é o desmatamento, é preciso priorizar soluções que contenham seu avanço. Dados recentes do MapBiomas indicam que, nos últimos trinta anos, as áreas que mais contribuíram para a conservação de florestas e menos desmataram no Brasil foram as Terras Indígenas. Houve menos de 1% de desmatamento dentro dessas áreas, enquanto nas propriedades privadas o índice alcançou em torno de 20%. Em nível global, a assimetria se manifesta no fato de que os países que concentram maior biodiversidade ficam na América Latina, Caribe e África e não figuram entre os mais ricos, mas têm arcado, sozinhos, com os custos da conservação desses remanescentes.

 

Esse cenário mostra o quanto é essencial que a COP 16 avance na definição de ferramentas e mecanismos para financiamento da conservação de florestas e reconhecimento dos esforços realizados pelas populações tradicionais e povos indígenas ao redor do mundo em favor da biodiversidade. Garantir a continuidade desses esforços é essencial para responder aos grandes desafios da sociedade contemporânea, como o enfrentamento da crise climática, a transição para uma economia global descarbonizada, sustentável e ética, e a redução das desigualdades sociais. 

 

Na última COP Biodiversidade (COP 15), estimou-se que seriam necessários no mínimo US$ 200 bilhões anuais para financiar a proteção e a restauração da biodiversidade e que esse valor deveria vir tanto de recursos públicos quanto privados. Alguns mecanismos foram implementados, mas precisam ser fortalecidos, como o Fundo Global para o Meio Ambiente e o Mecanismo Global para a Biodiversidade. Outros começam a emergir, como os mecanismos de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA), os créditos de biodiversidade (já colocados em prática na Austrália) e o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (FFTS), proposto pelo Brasil na COP do Clima de 2023, em Dubai. 

 

Protagonista natural da agenda de biodiversidade, o Brasil só deve apresentar sua Estratégia e Plano de Ação Nacional para a Biodiversidade (EPANB) no final deste ano. Até aqui, foram realizadas consultas públicas, com contribuições da sociedade civil, academia, setor empresarial, populações tradicionais e povos indígenas. A EPANB reúne 23 metas a serem cumpridas até 2030. Dentre elas, a Meta 15 merece atenção especial, pois abre possibilidade para que o setor privado se engaje de fato nessa agenda. 

 

Nas diretrizes propostas, espera-se que grandes empresas monitorem, avaliem e divulguem os impactos dos seus negócios sobre a biodiversidade, visando reduzir danos e gerar impactos positivos para a conservação. No entanto para que essas diretrizes sejam incorporadas, o setor empresarial precisará repensar seu modelo de intervenção, hoje muito focado na mitigação de danos e em ações de responsabilidade social, abordagem que predomina na maioria das corporações, mas não resolve problemas centrais da sociobiodiversidade. Será fundamental, por exemplo, repensar as cadeias de fornecimento, privilegiando soluções baseadas na natureza, na conservação das florestas e na valorização dos modos de vida dos povos tradicionais, induzindo desenvolvimento local e geração de valor compartilhado com essas populações, reconhecidamente guardiãs da biodiversidade. 

 

Diante do tamanho do desafio que significa deter e reverter a perda de natureza até 2030 – objetivo do Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (GBF), como ficou conhecido o acordo firmado na COP 15 –, é imperativo juntar esforços públicos e privados. É igualmente indispensável que os países ricos assumam sua parte nessa contabilidade global e que a sociedade civil acompanhe e exija que essa oportunidade não seja desperdiçada.

 

Artigo originalmente publicado pelo Valor.

 

* Patrícia Cota é diretora executiva adjunta do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Luiz Brasi Filho é gerente da rede Origens Brasil® na mesma instituição

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